Esta semana o blog da Labrador entrevistou Guilherme Peres, curador da Casa do Saber. O entrevistado nos coloca por dentro de algumas das dinâmicas da instituição, destacando o processo da criação de cursos, palestras e eventos notáveis promovidos lá dentro. Confira!
O que significa ser curador? Como é o seu trabalho de curadoria na Casa do Saber?
O termo “curador” tem uma carga fortíssima, e, apesar de ter se pulverizado por um bocado de áreas, às vezes ficamos meio ressabiados de usar (eu, pelo menos). Gosto muito da definição do Agnaldo Farias (que inclusive deu aulas na Casa do Saber), associando a tarefa à ideia de que o curador é alguém que descobre algo muito interessante e quer dividir com os outros, um pouco como um professor, “construindo narrativas, selecionando obras e dispondo tudo isso no espaço, criando eixos, entrechoques, relações e colisões – e faz isso para os outros, basicamente –; é respeitar e ter consideração pelo olhar do outro”. No fundo, eu fico atraído por essa ideia de construir narrativas e criar eixos, juntando no mesmo barco questões que, à primeira vista, podem não ter nada a ver, mas que fazem sentido.
Na curadoria, uma das frentes em que atuo na Casa, a grande questão é a produção e gerenciamento de conteúdo. Todo esse processo de “o que”, “quem” e “como” (que curso será dado, por quem será ministrado e como entra no programa) é feito, em média, quatro vezes ao ano – o cuidado, a atenção e a responsabilidade que isso tudo exige é enorme e talvez seja o maior desafio. A programação da Casa é algo quase com vida própria, em que trabalhamos sem parar durante o ano todo – coisas vão entrando, mudando, saindo, e resultam em cerca de 150/200 eventos por semestre.
Além dos cursos em si, cuido também, com a Maria Fernanda Cândido, do Ciclo de Leituras Teatrais: uma vez ao mês, fazemos um encontro com diretores de teatro para a leitura de algum texto (às vezes clássico, às vezes autorais, sempre a critério do diretor da vez).
Fora essa parte, sou responsável pela curadoria de duas outras frentes da Casa: o canal no YouTube (hoje com 453 mil inscritos) e o Quem Somos Nós?, programa da Casa na Rádio Eldorado e no YouTube apresentado pelo Celso Loducca (um dos sócios-fundadores). Nos dois casos, sou responsável pela definição dos convidados e dos temas que serão abordados.
Na parte mais administrativa, fico responsável também pelo conteúdo da página da Casa no Facebook e no Instagram, e pelo programa de bolsas de estudos, que garante a estudantes de graduação de baixa renda e professores da rede pública gratuidade na inscrição de qualquer curso.
Ufa, acho que é isso, resumidamente.
Como é feita a curadoria dos cursos e palestrantes?
A curadoria da Casa é composta pelo Mario Vitor Santos, diretor executivo, pelo Robinson Alves e por mim.
Tradicionalmente, partimos de três eixos: temas, obras e autores. “Os Pensadores”, carro-chefe da Casa na área de filosofia, vai na aba “autores”, e é inspirado na coleção da Editora Abril. Dele se desdobram os outros dois eixos: por exemplo, um curso sobre Ética (“temas”) ou outro sobre o livro “Matéria e Memória”, do Bergson. Também recebemos sugestões dos próprios professores ou de pessoas que querem fazer parte do quadro da Casa, e aí vamos ajustando a linguagem e a proposta sempre em conjunto.
Tudo é sempre discutido (não raramente de forma calorosa) e decidido em conjunto, com a aprovação final do Mario. Mas as ideias podem surgir de qualquer lugar: às vezes de uma conversa entre nós, de um filme que alguém viu, um livro ou reportagem que leu, e vez ou outra de pura piração. Aí a gente dá estrutura, faz o polimento, tenta dar coesão à coisa, até virar algo reconhecível, assimilável, que faça sentido. Se não fizer, lixo e começamos do zero.
Alguns professores mais antigos, que já conhecem bem a Casa, frequentemente aparecem com propostas – ou porque o tema lhes é caro, ou porque é algo que tem inquietado cada um. Nesses casos, não é difícil embarcarmos na ideia, ajustando uma ponta ou outra de acordo com a expectativa do público.
Quando é o caso de algum candidato a professor, o processo é um tanto mais cuidadoso (também em função da expectativa do público). Fazemos uma aula aberta, gratuita, com uma abordagem introdutória ao tema que esse professor quer apresentar na Casa. Essa aula é avaliada pelos alunos e, a partir dessa avaliação, vamos aparando arestas e ajustando qualquer questão. Já aconteceu de professores com um currículo impecável não vingarem, pelo fato de o público da Casa ser diferente daquele das universidades ou de outros centros culturais. Como também já aconteceu o contrário, de professores que estão começando funcionarem bem no diálogo com quem vem à Casa.
Qual foi a palestra/aula mais memorável?
Tiveram várias. Comecei aqui em 2010, como estagiário, ainda na faculdade. Quando me formei, fui adotado e fiquei. Costumo brincar que aprendi muito mais aqui do que na faculdade, pelo contato com algumas das pessoas mais brilhantes que já conheci.
Para ser mais específico, as aulas e nomes que vêm a mente num primeiro momento, de cursos que acompanhei, são: Franklin Leopoldo e Silva e um curso chamado “Eu e Deus”, em que ele abordou como Santo Agostinho, Pascal, Bergson e Sartre trataram a relação do humano com o divino; Pedro Paulo de Sena Madureira sobre como a noção de beleza é essencial para a formação do conceito de cultura (quase trabalhei isso em uma dissertação de mestrado); Oswaldo Giacoia Junior com uma aula sobre o conflito entre os conceitos de “legalidade” e “legitimidade”; Yudith Rosenbaum falando sobre Clarice Lispector, mais de uma vez (e quantas mais houverem); Scarlett Marton sobre Zaratustra; Clóvis de Barros Filho num curso de cinco aulas sobre Pierre Bourdieu; José Garcez Ghirardi falando sobre literatura inglesa; José Miguel Wisnik sobre literatura brasileira; Lilia Schwarcz sobre qualquer tema que ela já tratou aqui. Com certeza deixei passar alguém…
Um lado bom é o contato com o que está acontecendo agora – aqui se faz presente a veia jornalística do Mario. Gente da política, vida pública e do jornalismo tratando de questões do momento e fomentando e enriquecendo as discussões, proporcionando um tipo de acesso, contato e diálogo (diálogo!) que é raro hoje. E mudando, como já aconteceu mais de uma vez, a imagem que eu e outros tínhamos de várias pessoas.
Em São Paulo, as salas são nomeadas por cores – há uma razão específica?
Boa questão… Não que eu saiba. A Casa do Saber surgiu em uma sala de estar: o grupo de sócios se reunia na casa de um deles para uma aula particular regada a vinho (tradição que se mantém aqui, com os vinhos nos intervalos das aulas), antes disso virar um negócio. Quais eram as cores das salas eu não saberia dizer. Nem se existe algum significado profundo por trás de cada uma, mas todos, professores e alunos, tendem a preferir qualquer uma delas ao auditório, que foge desse conceito (tem cadeiras fixas, alinhadas, nada a ver com sala de estar).
De todos os cursos que são oferecidos, quais são os temas mais populares?
Existem eventos recorrentes, que não saem de moda – como as questões básicas da filosofia. “Os Pensadores”, por exemplo, está na grade da Casa desde a fundação, em 2004. Essas abordagens de “porta de entrada” são essenciais, porque mostram a infinidade de possibilidades – são delas que se desdobram inúmeras questões.
Por outro lado, há questões do momento, aquilo que está acontecendo no mundo: crises, conflitos, questões candentes. Com o excesso de informações, e a facilidade de acesso às informações, existe uma demanda por uma análise mais aprofundada, detida, cuidadosa dessas questões, para além do noticiário. O que as motivou, quais tensões estão dormentes ali que suscitaram as movimentações etc. Agora, enquanto escrevo, temos planejados encontros que vão da crise da segurança pública até uma conversa sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura, debates com presidenciáveis, entre outros.
E há ainda certas áreas que surgem como interesses “da época”, como foi o caso dos orientalismos há quase uma década, da neurociência há alguns anos ou, ainda nesse movimento, a meditação – não que esse interesse suma depois de um tempo, mas parece que a curiosidade por eles aflora de forma intensa até se assentar. E a gente pega a onda junto, buscando entender a melhor forma de ficar em pé na prancha.
A nós interessa todas essas frentes: explorar a produção cultural já estabelecida, o conhecimento que vem desde muito antes de todos nós, mas também analisar aquilo que acontece agora (e muitas vezes se debruçar sobre o antigo é a única maneira de entender o novo, descolando-se do presente, olhando “de fora”, ou mesmo examinando os opostos, a fim de construir noções complementares).
Qual a importância de uma parceria entre a Casa do Saber e a Labrador, na sua opinião?
Aqui só posso responder por mim, mas acho interessante por uma série de motivos, principalmente pela questão de disseminação de cultura, que se alinha a um dos pilares da Casa. Não só pelo produto final – o livro –, mas pela iniciativa de aprimoramento de quem pretende se colocar no mundo. Isso tudo envolve, acho, fazer chegar à superfície alguns nomes, temas e obras que, de outro modo, talvez permanecessem à sombra – isso também é curadoria!
No fundo, a parceria é importante porque temos um bocado em comum, talvez mais do que a gente imagine.